* Por Pedro Ramos, Rodrigo Kiko Afonso e Felipe Matos
A proibição do aplicativo coloca em risco o ambiente de inovação promovido pelas startups.
No final da manhã da segunda-feira, dia 2 de maio, o WhatsApp, aplicativo de mensagens instantâneas utilizado por mais de 100 milhões de pessoas no país, teve seu acesso bloqueado para todos seus usuários. O motivo foi o descumprimento de uma ordem judicial emitida pelo juiz Marcel Montavão contra a Facebook - empresa responsável pelo aplicativo - que, segundo este juízo, tem ignorado pedidos da justiça para fornecer o conteúdo de conversas trocadas por usuários do aplicativo, os quais estariam sendo investigados pelo crime de tráfico de drogas. O processo completo corre em sigilo de justiça.
O mesmo juiz, dois meses atrás, havia ordenado a prisão do principal executivo da Facebook no Brasil pela recusa da empresa em não fornecer o conteúdo das mensagens. Em sua defesa, a empresa tem reiteradamente afirmado que não armazena o conteúdo das mensagens trocadas entre seus usuários, motivo pelo qual a obrigação exigida pela justiça sergipana é impossível de ser cumprida. Cabe lembrar que o Marco Civil da Internet, vigente desde 2014, não obriga empresas a armazenarem qualquer conteúdo submetido pelos usuários a seus servidores, mas tão somente os registro de acesso, como IP e horário de acesso, conforme seu artigo 15.
Não foi a primeira vez que esse tipo de desconhecimento e ativismo judicial tem ameaçado empresas de atuar no país. Ano passado, uma decisão do Piauí quase bloqueou o WhatsApp no país inteiro e, no final de 2015, uma decisão da 1a Vara Criminal de São Bernardo do Campo bloqueou o acesso do aplicativo por quase 12h.
A situação é complexa e cheia de nuances. A nosso ver, o caso traz pelo menos duas reflexões importantes e ao menos uma consequência terrível para o ambiente de negócios e a inovação no país.
A primeira reflexão refere-se ao papel das instituições. Evidentemente, o cumprimento de decisões judiciais é fundamento do estado de direito e condição necessária para um estado democrático. Ao mesmo tempo, não se pode coagir nenhuma empresa a cumprir com uma determinação que não possua fundamento na legislação brasileira. Parece-nos perigoso imaginar que juízes e promotores possam coagir empresas, por meio de prisões e bloqueios de aplicativo, para cumprir decisões sem lastro jurídico nem amplo contraditório, baseadas em uma concepção de estado vigilante, em que empresas seriam, por sua natureza, obrigadas a monitorar e a armazenar conteúdo de conversas particulares entre cidadãos brasileiros.
Esse tipo de ativismo, em que juízes e juízas tendem a ultrapassar suas competências com o objetivo de “resolver com as próprias mãos” questões de competência de outras esferas institucionais (e muitas vezes sem o conhecimento necessário), é um problema crônico em nosso país. A desconfiança no Legislativo e a inércia no Poder Executivo tem levado o Judiciário e o Ministério Público a empoderar-se de algo que não faz parte de suas funções institucionais. Em vez disso, propostas (censuráveis) de institucionalizar a prática de bloqueio de aplicações de Internet no Brasil, como o canhestro projeto de lei sugerido como parte do relatório final da CPI de Cibercimes, deveriam ser somente tratadas junto ao Legislativo e submetidos à aprovação do Executivo, ambientes constitucionalmente adequados para uma discussão ampla com a sociedade sobre os méritos e efeitos dessas questões.
A segunda reflexão refere-se ao papel dos provedores de acesso à internet nessa discussão. De forma coordenada, todas as cinco principais empresas de provimento de acesso à internet do país anunciaram rapidamente que iriam cumprir, de maneira integral, a decisão do juízo sergipano. Há uma ponderação importante aqui a ser feita: é também fundamento do Estado de Direito a ideia de que ninguém é obrigado a acatar uma decisão judicial desproporcional ou inadequada, sempre cabendo a possibilidade de recurso, em que o mérito da decisão pode ser avaliado. Há hoje uma postura pró-ativa e saudável de diversas empresas em defender seus consumidores perante abusos de autoridades e decisões desproporcionais, questionando-as, recorrendo sempre que possível e até mesmo assumindo multas, tudo em prol dos direitos de seus consumidores. É, nesse sentido, emblemática a resistência da Apple (e de outras empresas estadunidenses) em desenvolver brechas na criptografia do iPhone, com o objetivo de que o governo americano (com respaldo na lei, frise-se) pudesse acessar dados de seus usuários, em caso notório e recente de disputa entre a empresa e o FBI.
É razoável que milhões de usuários sejam afetados em decorrência de uma decisão como essa? Não deveriam as empresas defender o direito de seus usuários de utilizar o aplicativo que desejarem, da forma como lhes parecer mais útil e valioso? Esta questão coloca uma dúvida no ar sobre a atuação das teles brasileiras neste caso: Será que essa complacência pode fazer parte de um jogo de conveniência, no momento em que há uma queda de receita nas ligações mensagens SMS em função do uso massivo do Whatsapp como aplicativo principal de comunicação dos brasileiros? Ou mesmo com a questão da franquia de internet na banda larga fixa?
Finalmente, chegamos à (triste) consequência desse cenário. Em um Estado de Direito, a segurança jurídica é outro pressuposto fundamental ao empreendedorismo, à inovação e ao desenvolvimento econômico. Sem certeza sobre quais são as regras do jogo e quais as leis e regras aplicáveis aos modelos de negócio, empresários são condenados ao ambiente hostil de incertezas, em que seu empreendimento pode estar sujeito, de um dia para outro, ao peso da regulação ou à conveniência de decisões das autoridades.
Sem um cenário institucional em que decisões desproporcionais e descabidas são rapidamente expurgadas sem sequer ter seus efeitos confirmados, não há ecossistema para o empreendedorismo na área de tecnologia no Brasil. Como manter um negócio digital com a ameaça de seu fechamento repentino por um juíz de primeira instância? Como incentivar a criação de startups inovadoras por aqui com tamanha insegurança jurídica? O correto funcionamento das instituições sob o Estado Democrático e o respeito aos direitos dos consumidores em face de abusos de autoridade são bases fundamentais para desenvolvermos uma cultura rica em emprendedores, atraente para investidores e saudável para os negócios. Essas são pautas importantes do empreendedorismo e do setor empresarial brasileiro, e casos como o bloqueio do WhatsApp apenas nos lembram que, a cada dia que passa, precisamos reforçar essas pautas em prol do desenvolvimento social e econômico.
* Sobre os autores
Pedro Ramos é advogado, sócio do escritório Baptista Luz & Gimenez, mestre em Direito dos Negócios pela FGV, especializado em Direito da Internet e Novas Mídias e mentor jurídico de startup e conselheiro do Dínamo.
Felipe Matos é Fundador e Head de Ecossistemas da aceleradora de startups Startup Farm e e Diretor Executivo do Dínamo. Foi Diretor do programa Startup Brasil, no Governo Federal. Tem 19 anos de experiência em empreendedorismo digital como empresário, investidor, educador, acelerador e gestor de políticas públicas.
Rodrigo Kiko Afonso é Diretor Executivo da Ação da Cidadania e Diretor Executivo do Dínamo. Tem 10 anos de experiência como empreendedor no setor de Internet e tem atuado promovendo o empreendedorismo tecnológico como ferramenta de desenvolvimento social para empreendedores das classes C, D e E.