Apesar de todos os desafios, o ecossistema de startups brasileiro tem se desenvolvido
e ganhado destaque nos últimos anos. Segundo dados da Startupbase, no último ano
o Brasil alcançou a marca de 12 unicórnios (empresas avaliadas acima de U$ 1 bilhão)
e desde 2016 os investimentos de alto risco vem crescendo ano a ano, segundo dados
da LAVCA. Em 2019, o Brasil acumulou U$ 2,4 bilhões em investimentos, quase o dobro
do ano anterior, figuras que são acompanhadas de um crescimento expressivo do número
de startups no país - 13.087 startups, segundo a Abstartups.
Não há dúvidas: o ecossistema de Startups é um importante elemento para a recuperação econômica do país, geração empregos e posicionamento do Brasil em um radar global
de empresas inovadoras.
E por isso que trazemos aqui nossas contribuições sobre o Projeto de Lei 2.630/2020,
do Senador Alessandro Vieira, que busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Diversas outras entidades já se debruçaram sobre o tema em suas especialidades e em diferentes perspectivas - Data Privacy, IRIS, ITS-rio, Coalizão Direitos na Rede são alguns exemplos de contribuições sérias
e que apresentaram críticas consistentes.
Acreditamos que nossa participação nesse debate deve complementar essas visões e partir de nossa especialização - o ecossistema de startups e empreendedorismo.
Porque as startups também são afetadas?
As definições adotadas pelo PL são extremamente amplas e podem acabar regulando modelos de negócios que não estavam no escopo inicial da lei. Isso porque, a definição de rede social adotada é abrangente e abre margem para interpretações que podem enquadrar outros modelos de negócios, como marketplaces, fintechs, software as a service (saas) como redes sociais.
Outro problema para o ecossistema de Startups já começa no primeiro artigo, partes
do projeto:
Art. 1 (...)
§1º Esta Lei não se aplica aos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada que ofertem serviços ao público brasileiro com menos de 2.000.000 (dois milhões) de usuários registrados, para os quais
as disposições desta Lei servirão de parâmetro
para aplicação de programa de boas práticas, com vistas
à adoção de medidas adequadas e proporcionais no combate ao comportamento inautêntico e na transparência sobre conteúdos pagos.
O número de dois milhões de usuários registrados aparece sem fundamentação – por que dois e não 10, 50 ou 100 milhões? Aparentemente, os legisladores basearam o número
na legislação da Alemanha - um país com dois quintos da população do Brasil. Não há aqui um diálogo com a realidade brasileira, criando a falsa impressão de que a legislação
só atingirá poucos atores. Grandes empresas têm recursos para se adaptar a novas leis,
e startups não.
Startups são construídas visando o crescimento exponencial –nenhuma cria uma solução pensando em atingir poucas pessoas, e esse é parte do sonho de ser o próximo grande negócio e ter uma base de usuários muito maior que dois milhões. Essa é a natureza
das startups. Essa é a natureza de investimentos de risco.
Dois milhões de usuários é um número relativamente pequeno ao pensarmos em um país continental como o Brasil. Sendo assim, startups teriam que começar o seu negócio tendo que, no mínimo, prever e se preparar para cumprir obrigações onerosas, e que podem reduzir a atração de investimentos e sua competitividade em relação a incumbentes.
Há, com o dispositivo proposto no PL, um desincentivo para startups criarem inovações para envio de mensagens e redes sociais, um mercado longe de já estar estabelecido – basta vermos o crescimento do aplicativo TikTok neste último ano.
Restrições à inovação tecnológica
O PL traz uma restrição implícita à inovação. Define-se um formato em que todas
as plataformas de mensageria privada e redes sociais devem seguir – não é uma lei principiológica, e sim uma lei que trata detalhadamente de aspectos técnicos, usabilidade e processos das plataformas. Com isso, a lei corre o risco de caducar rapidamente, tendo dificuldade em acompanhar futuras inovações.
Uma lei que sempre precisa ser atualizada é um custo para o Estado. Leis mais detalhistas e menos principiológicas criam espaço soluções que estarão à margem da lei.
Um exemplo é a atual redação do art. 9º, que busca regular de forma categórica aspectos extremamente técnicos de funcionalidades, determinando como as plataformas de mensageria devem projetar suas ferramentas. Isso destrói a imaginação empreendedora em novos serviços, estabelece como “normal” os serviços existentes e, novamente, cria obrigações que só podem ser cumpridas por grandes empresas, sendo onerosas para startups.
Uma lei que não seja tecnologicamente neutra será simplesmente descumprida por não ser aplicável, ou vai ser utilizada de forma seletiva. Jamais será aplicada de forma coerente e uniforme, muito menos perdurará devido à rápida evolução tecnológica e estado da arte da Internet.
Nós do Dínamo acreditamos que a única constante fundamental da inovação é a da mudança. Em toda indústria, transformações são frequentes e necessárias, e detalhes técnicos
que hoje são tidos como imutáveis podem ser sucateados com o surgimento de novas tecnologias. Nenhuma lei isolada resolverá problemas de disseminação de conteúdos ilegais, e outras políticas públicas devem ser consideradas para que esses problemas sejam superados.
No Brasil, temos o Marco Civil da Internet, exemplo de legislação principiológica, reconhecida em todo o mundo, e que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Além de ser uma norma principiológica, traz consigo
a ideia de neutralidade tecnológica, isto é, de restringir ao mínimo possível
as questões técnicas relacionadas com a regulação da rede, evitando assim criar situações de rigidez que poderiam impedir a inovação tecnológica, caducar rapidamente ou, ainda, criar custos excessivos para a aplicação da lei.
Legislações principiológicas, como o Marco Civil da Internet, tem uma efetividade atemporal muito maior, principalmente porque tecnologias tornam-se obsoletas de forma muito rápida. No formato atual, o PL será obsoleto pouco tempo após sua publicação.
Bolha Tecnológica
Ao definir como os provedores de aplicações de mensageria privada devem funcionar,
a legislação coloca o Brasil em uma ilha de isolamento em relação a novas tecnologias desenvolvidas globalmente, quebrando a ideia uma internet livre e global, além de ferir legislações internacionais como, por exemplo, as leis de proteção de dados da Europa
e Estados Unidos, com consequência possíveis até na participação do país na OCDE.
Por exemplo, uma plataforma que funcione em todo o mundo de uma mesma forma teria que criar uma versão específica para funcionar no Brasil, o que pode literalmente transformá-lo em outro produto que não integre com a plataforma no resto do mundo
ou, ainda, que não possa ter todos os recursos ou inovações. Isso isolará o Brasil
em relação ao acesso a novos produtos e tecnologias desenvolvidas no mundo.
Logo, a proposta pode resultar em uma lei que inviabilize o uso das redes sociais
e aplicativos de mensageria privada por grande parte da população brasileira, instaurando uma visão de regulação da Internet, baseada na identificação massiva
e na criminalização de usuários, na contramão da referência internacional que o Brasil
é conhecido.
Amplia o risco de brechas de segurança
A discussão sobre a coleta excessiva e a retenção desnecessária de dados dos usuários
no PL é outro ponto importante. O projeto estabelece uma série de dados que devem ser armazenados pelas redes e serviços de mensageria, ampliando as obrigações legais
de retenção de dados, alterando inclusive o Marco Civil da Internet, e definindo
que provedores devem armazenar ainda mais informações sobre
os usuários que acessam suas plataformas, muitas delas sem um resultado efetivo.
Isso vai na contramão do Marco Civil e da própria LGPD. A coleta excessiva de dados para identificação de usuários cria a necessidade de um aumento nos custos de armazenamento
e segurança de dados, que será mais impactante para startups. Além disso, ao obrigar
as plataformas a armazenarem mais dados, quem acaba mais exposto a potenciais vazamentos e uso indevido de seus dados é o próprio usuário das plataformas.
É preciso um amplo debate
Entendemos que uma resposta regulatória deve vir a partir de amplo diálogo com
a sociedade civil e não pode acontecer de forma apressada, sem um processo de discussão adequado a um tema tão complexo e multifacetado.
Tivemos experiências recentes bastante maduras em relação às discussões de legislações que trataram de temas fundamentais para a liberdade, privacidade e inovação, que foram
o Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e, de certa forma, o Marco Legal das Startups, este último ainda em discussão pelo executivo e legislativo. Discussões longas, que duraram alguns anos, mas que foram necessárias para um processo democrático maduro e eficiente e que contaram com intensa participação e discussão da sociedade civil organizada, trazendo questionamentos técnicos e conceituais em relação
à sua criação.
O da PL das Fake News segue o caminho contrário. Durante a tramitação no Senado, houve pouco espaço para discussão com a sociedade civil organizada e há uma análise muito clara, por diversos atores do ecossistema, de que a forma com que o Projeto foi aprovado na primeira casa traz riscos sérios aos direitos dos usuários na Internet, à privacidade e proteção de dados pessoais e também um risco direto à inovação e ao ecossistema
de startups brasileiro.
Conclusão
Acreditamos que legislações tão multifacetadas exigem a colaboração dos diferentes setores e devem ser construídas de forma aberta e participativa, com o envolvimento amplo da sociedade civil. Por fim, acreditamos no poder de legislações principiológicas e tecnologicamente neutras para assegurar o desenvolvimento de um ambiente de negócios
e uma internet livre, aberta e democrática.
O Dínamo, como uma das entidades representativas do ecossistema de startups do Brasil, coloca-se aberto e à disposição para a participação nos debates públicos que vêm ocorrendo sobre o tema, trazendo a visão dos diferentes atores do ecossistema.